Sobre os contratempos da publicação de Dona Guidinha do Poço.
O romancista e poeta cearense Antônio Sales, fundador da Padaria Espiritual, já morando no Rio de Janeiro, em visita ao Ceará, recebeu de Tereza Botelho, viúva de Oliveira Paiva o manuscrito e entregou-o a José Veríssimo para publicar na Revista Brasileira. Com a interrupção da circulação da revista. Nela foram publicados alguns capítulos.
Monteiro Lobato e Antônio Sales, trocaram cartas a
respeito da publicação de Guidinha do Poço. Vejamos:
Em carta datada de 30 de novembro de 1918,
Monteiro Lobato, dono da Revista Brasileira, detalha os planos editoriais de
sua revista a Antônio Sales:
“Meu sonho, na
Rev. do Brasil, é fazê-la crescer pelo país inteiro, de modo a ligar todos os
espíritos superiores; e pô-la a serviço deles, não só para a publicação das
suas obras, como para a divulgação das anteriores, já publicadas. Não procuro reunir nela os medalhões. Entram
velhos e novos, contanto que revelem valor. Erro diariamente na apreciação do
valor, submeto-me às vezes às injunções de amizade, de simpatia, mas dado o
desconto da contingência humana - procuro fazer dela um instrumento sério e
honesto de entrelaçamento mental como não existiu nem existe outro no país.
Está no meu programa publicar ensaios críticos sobre as obras injustamente
esquecidas, ou mal conhecidas.”
Nessa mesma carta, Lobato fala de Dona Guidinha do
Poço:
“Outra novela
que merece ser tirada do ostracismo é a D. Guidinha do Poço. Parece-me que a
Revista Brasileira não a publicou integralmente. Com quem estarão os originais? Já escrevi a
várias pessoas a respeito, sem resultado. Acho muito bonito aquilo, e queria
até editá-la. Faz parte do meu programa uma seção editorial, por um sistema
novo, que organizo. Pus, e estou pondo, a Revista em contato com todas as
cidadezinhas do Brasil onde haja uma livraria ou papelaria - já fichei 200 - e
as obras editadas pela Revista aparecerão nessas 200 casas ao mesmo
tempo. Poucos exemplares, 3, 5,10,
conforme a importância do lugar, mas aparecerão, e serão adquiridas pelo menos
em parte. Obterei assim uma difusão que ninguém supôs nunca possível. Já fiz a
experiência com o meu livro, e o resultado foi que neste semestre (precisamente
5 meses) tiro dele 8.000 ex. em três edições”.
Em 2 de janeiro de 1919, o assunto passa a gravitar em torno do livro de
Oliveira Paiva. Diz Lobato:
“Tanto tempo andei atrás de boas
informações sobre a Guidinha do poço e afinal me chegam elas inesperadamente e
da melhor fonte. Tenho cá a Revista Brasileira, mas com falta dos últimos
fascículos onde vem o final da primorosa novela. Desejo muito editá-la em
volume porque é um crime tê-la enclausurada numa revista hoje rara. Mas, nesse
caso, com quem devo me entender a respeito de direitos autorais? Na qualidade
de editor tomo cautelas para evitar futuros aborrecimentos. Preciso de informações
a respeito. Fica desde já entendido que o amigo prefaciará a obra e eu me
esforçarei por que na fatura material não destoe o livro das excelências da
obra. Quero ver se a faço ilustrada. Depois, muita propaganda e reclame”.
Tudo indica que, Antônio Sales, tinha o romance de Oliveira Paiva. Nesse sentido, escreveu Lobato, em 25 de
fevereiro de 1919:
“Quanto ao
romance do Paiva, aqui farei copiar o que falta ao que me vai mandar, e havemos
de fazer uma boa edição. Não era
conveniente virem esses originais
com um a revisão sua? Há de por força haver gatos neles”.
Em 5 de abril de 1919, reitera Lobato:
“Vamos ver se
me arruma o Paiva. Dá um belo volume,
sobretudo se eu puder fazê-lo ilustrado”.
Em 28 de abril de 1919, referindo-se ao seu Urupês que, após o
esgotamento de três edições sucessivas, havia despertado a atenção de Rui
Barbosa, então candidato à Presidência da República, que o mencionara numa
conferência, intitulada A questão social e política no Brasil proferida no
Teatro Lírico do Rio de Janeiro a 20 de março de 1919, Lobato refletiria sobre
o poder da crítica, não sem um certo tom de desânimo e conformismo, numa observação que poderia facilmente ser
aplicável à Dona Guidinha do Poço, que o editor buscava resgatar ao esquecimento:
“O Rui
fez-se-me evaporar toda a terceira edição dos Urupês e meter no prelo a quarta,
atingindo assim a onze milheiros em nove meses. Hei de te mandar um da nova edição,
um pouco melhor do que as anteriores. O Jeca popularizou-se horrivelmente. Raro o dia em que não o vejo citado nos
jornais. No Rio já está até em música e me consta que em breve surgira à luz da
ribalta. O Rio atirou-se com furor uterino aos Urupês devorando 2000 exemplares
em 15 dias, esgotando a edição e fazendo pedidos que quase absorvem já a metade
da quarta. Que força tremenda é a palavra do Rui! E que sorte a minha! Isto
entristece. Tudo na vida depende da “chance”, tal qual como na roleta. Quantos
livros preciosos por aí ignorados só porque os não favoreceu a crítica, porque
os tratou com indiferença ou má-fé! Mas é assim a vida e não vale deblaterar
contra”.
Em 1º de junho de 1919 tonifica a expectativa pela chegada de Dona
Guidinha do Poço:
“Quanto à
Guidinha que venha, que benvinda será”
Na carta de 20 de agosto de 1919 consta o registro do recebimento do
livro e Lobato sobre os direitos autorais:
“Estou com uma
carta sua em atraso. Veio com ela a Guidinha. Quanto à propriedade literária, a
primeira lei que cuidou disso entre nós foi uma de 1898 estabelecendo o prazo
de 50 anos da data da publicação da obra. Ora a Guidinha saiu em 99, já no
regime dos 50 anos. Não está, pois, no domínio público, e eu necessitava duma autorização
dos herdeiros para reeditá-la. Dá-se entre nós uma coisa curiosa: a edição de
uma obra qualquer, literária, é um negócio insignificante, que raro dá um
pequeno lucro. Mas se um editor se mete a fazê-la sem autorização do autor ou
herdeiros corre o risco de ver cair-lhe em cima um processo, com pedido de
gorda indenização. [...] O caso, quanto à Guidinha, está pegando aqui. Não pode
o amigo indicar-nos os herdeiros do Paiva? Dirigindo-nos a eles temos esperança
de obter a autorização salvaguardadora”.
Em carta de 3 de outubro de 1919,
Lobato responde:
“Quanto ao negócio da Guidinha, ficamos
entendidos. Edito-a logo que puder, independente
de mais nada. A sua carta tirou-me os
receios”.
Em outra carta, posterior, sem data,
Lobato escreve:
“Recebi
carta, retrato, Guidinha e não respondi por vários motivos. 1º porque me
aborreceu – perdoe a expressão – o tom malcriado da carta versus
Alemanha. Não que eu tenha nada com a Alemanha, nem eram minhas aquelas
palavras que te irritaram (eram do Neiva) mas pelo tom. Respondi com raiva, mas
não mandei a carta, vendo que era tolice brigar por tão pouco. Cada um tem lá o
direito de pertencer a este ou aquele partido – e em matéria e sociologia o que
há são partidos políticos, violentos, extremados. A calma e filosófica apreciação
de factos é impossível quando o problema social é de nossos dias e sofremos a influência
das correntes de propaganda. Você, por exemplo, tem a visão apaixonada pela apresentação
francesa dos factos, vê a Alemanha através dos olhos gauleses e faz corpo com a
obra política movimentada pela machina de propaganda aliada. É uma contingencia
humana, e m direito teu. Já comigo dá-se o contrário. Vejo os factos por um
outro prisma; tenho que os provar se equivalem, saem todos da mesma massa,
/fl.2/ e são bons ou maus conforme são fracos como nós ou fortes como a Alemanha,
a Inglaterra, os E. U. Mas como a violência da corrente aliada revoltou-me, fiz
como Você, esqueci a filosofia e alistei-me no partido contrário. Sou
pró-Alemanha. Considero-o o único país civilizado, culto, decente, digno de viver.
Aprovo incondicionalmente. tudo o que a Alemanha fez, invasão da Bélgica,
destruição da rança, bombardeio de catedrais etc. Só lamento que o não fizesse
em escala maior ainda, ando cabo de todos os povos latinos, inclusive o nosso,
que é latino da África, à força de gás lacrimogêneo, gás de mostarda, gás do
diabo. Tudo que não é alemão para mim traz o cunho duma marca inferior, e
vice-versa. Como vê, partidarismo extremado, violento, injusto, cego – tal qual
o teu. Não há, pois, entre nós, harmonia possível neste ponto, e não vale a
pena perdermos tempo com esta politicagem”.
Após dez meses, uma carta de 1º de setembro de 1921, recoloca a ideia da
publicação de Dona Guidinha do Poço:
“Não acha que
já é tempo de fazermos as pazes? Você está brigado comigo, mas eu estou
disposto a pagar na mesma moeda porque continuo a ter Antônio Sales em alta
estima e a fazer propaganda dos seus livros sempre que me ocorre oportunidade. Além
disso, a vítima da sua turra está sendo o Oliveira Paiva, cuja D. Guidinha inda
não desisti de vulgarizar. Nem por amor dele você se resolve, caro e
neurastênico Sales, a reatar amizade com o Lobato? Vamos lá! Toque nestes ossos
e retomemos o caminho do ponto em que a Alemanha nos apartou. A Guidinha! Só
cai no domínio público em 1949! E para dá-la agora só com autorização dos
herdeiros. Não sei como resolver isto, pois não os conheço nem sei onde moram.
Salva-me, Sales! Descobre-me os homens.
O Paiva precisa sair da obscuridade, e sairá, se fizermos as pazes”.
Em resumo, percebe-se que Lobato tentou editar o livro de Oliveira
Paiva. Alguns autores dizem que Lobato deixou de publicá-lo, em razão, talvez,
dos direitos autorais ou por ter sua casa editorial entrado em crise, a partir
de 1924.
Com todo o nosso respeito, discordamos. Apenas deixamos algumas questões
no ar:
Na carta de 3 de outubro de 1919, Lobato responde:
“Recebi
carta, retrato, Guidinha e não respondi por vários motivos. 1º porque me
aborreceu – perdoe a expressão – o tom malcriado da carta versus
Alemanha. Não que eu tenha nada com a Alemanha, nem eram minhas aquelas
palavras que te irritaram (eram do Neiva)....”.
Na última carta (1º de setembro de 1921) Lobato fala em: “fazermos as
pazes?”
Enfim, não sabemos o exato motivo que o livro de Oliveira Paiva não foi
publicado por Monteiro Lobato. Mas podemos afirmar que teria mais repercussão à
época.
Fonte: Correspondências de
Monteiro Lobato e Antônio Sales, Arquivo- Museu de Literatura Brasileira,
Fundação Casa de Rui Barbosa.)
Anos depois, antes de falecer em 1940, Antônio Sales confiou
os originais ou cópias do romance de Oliveira Paiva a Américo
Facó.
Em 1931, a filha de Oliveira Paiva, enviou uma
carta a Américo Facó, solicitando informação sobre a publicação de Dona
Guidinha do Poço.
Fonte: Inventário do Arquivo
Antônio Sales / Fundação Casa de Rui Barbosa.
Em tempo: Não encontramos nos pertences da filha
de Oliveira Paiva, resposta dessa carta, como informou irmã Simone Maria Fortes
– Secretária do Seminário.
Nas páginas seguintes, cartas encontradas no
inventário do Arquivo de Antônio Sales sobre a publicação de Guidinha do Poço,
dirigidas a viúva de Antônio Sales, de lavra de Américo Facó. Fonte: Fundação
Casa de Rui Barbosa.
Nota: Américo Facó escreve: “Não posso fazer sem autorização
de herdeiro ou herdeiros legítimos de Paiva, se acaso existem.” “se não houver
herdeiros, poderei tratar da publicação como se fora um livro de Sales”. Mas
será que Facó não recebera a carta da filha de Oliveira Paiva do ano de 1931?
Muito improvável, pois na carta seguinte ele toca na filha. Vejamos:
Nessa carta, Américo Facó pede a viúva de Sales que comunique
a filha de Oliveira Paiva, que os originais já estão em São Paulo e que os
direitos autorais cabem a ela. Mas ela já havia falecido em 27/10/1947.
Nota: Nessas duas cartas se percebe que Facó,
sabendo do falecimento da filha de Oliveira Paiva, pede que os direitos
autorias, sejam divididos entre as duas irmãs de Oliveira Paiva, Luiza de
Oliveira Paiva e Rosa de Oliveira Paiva (falecida em junho 1951) mãe de José Joaquim de Oliveira Paiva que, segundo a
família, não recebeu sua parte dos direitos autorais. Posteriormente, a pesquisadora Lúcia Miguel Pereira, incumbida pelo
editor José Olympio de escrever o
volume XII da História da Literatura Brasileira, abordando a prosa
de ficção de 1870 a 1920, deparou com o romance na Revista Brasileira e,
impressionada com sua qualidade, e curiosa em conhecer seu desenlace, pôs-se em
busca dos capítulos restantes, e acabou descobrindo os originais em mãos de
Américo Facó. Em entrevista ao jornal Tribuna da Imprensa em
1952, ela revela: “Tive, porém, a glória de descobrir e poder lançar um
escritor inédito – Manuel de Oliveira Paiva – cearense, autor de um dos
melhores romances regionalistas que conheço – “Dona Guidinha do Poço”.
Compilando a “Revista Brasileira” de José Veríssimo que se editou em fins do
século passado (séc. XIX), dei com a publicação, em série, do referido romance
que ficou inacabado, porque a “Revista Brasileira” também se acabou. Vi logo
que se tratava de uma obra de valor e fiquei obcecada pela ideia de descobrir -
lhe o final a qualquer preço. Escrevi para o Ceará, dirigi-me a escritores de
lá, percorri tudo o que é biblioteca aqui no Rio. Já estava começando a
desanimar, quando o acaso fez-me encontrar, numa reunião íntima, aquele que
detinha o tão ambicioso tesouro – o escritor Américo Facó.” Depois procurou Paulo Duarte, diretor da
editora Ipê, que mostrou interesse pela obra obtida por Américo Facó com “anuência
dos herdeiros”. Repita-se: Parte dos direitos autorias que seriam de Rosa de
Oliveira Paiva, irmã de Oliveira Paiva, falecida em 51, passariam para seu
filho José Joaquim de Oliveira Paiva que, segundo a
família, não os recebeu. Enfim,
Lúcia Miguel Pereira, confiou a Ipê a cópia datilografada da obra. Mas a
editora interrompeu suas atividades e o livro foi encaminhado para a editora
Saraiva que a publicou em 1952. A título
de curiosidade: No prefácio do livro publicado pela Saraiva, Lúcia Miguel Pereira, diz que que recebeu uma cópia e não os
originais.
Pondo um ponto final nessa
história, terminamos com as palavras de Monteiro Lobato:
“Além disso, a vítima da sua turra está sendo o
Oliveira Paiva, cuja D. Guidinha inda não desisti de vulgarizar. Nem por amor
dele você se resolve, caro e neurastênico Sales, a reatar amizade com o
Lobato?”
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